Há 215 milhões de casos de
trabalho infantil no mundo, mas nem todas as crianças se sentem
exploradas - algumas, inclusive, defendem seu direito de trabalhar.
Em alguns países latino-americanos, como na
Bolívia e no Peru, elas estão se reunindo em uma espécie de "sindicato
infantil", para cobrar das autoridades a permissão para trabalharem
livremente, ainda que isso seja, muitas vezes, proibido por lei.
A Organização Internacional do
Trabalho (OIT) estabeleceu o 12 de junho como o Dia Mundial da
Erradicação do Trabalho Infantil, considerando que o trabalho prematuro
"nega às crianças a oportunidade de ser crianças".
Ao mesmo tempo, milhares de crianças
latino-americanas, reunidas em diferentes movimentos nacionais,
reivindicam às autoridades que foquem em melhorar as condições daquelas
que desejam trabalhar.
"O que precisa ser erradicado são as formas de
trabalho precárias, como a prostituição, a mineração, o tráfico de
menores, a venda de drogas. Nós apoiamos o trabalho digno, como o meu",
argumenta à BBC Mundo Miguel Valenzuela, de 14 anos.
O menino peruano passa as manhãs na escola e, à
tarde, trabalha durante três horas na loja de sua mãe, vendendo produtos
para festas infantis.
"Minha mãe me levava à loja desde pequeno. Ela também começou a trabalhar cedo, aos 12 anos", diz Miguel.
Há cinco anos, ele soube, por intermédio de uma
colega de escola, da existência do Movimento de Adolescentes e Crianças
Trabalhadores Filhos de Operários Cristãos (Manthoc, na sigla em
espanhol) e decidiu se filiar. Atualmente é delegado nacional da
entidade.
Crianças em movimento
Em vários países do continente, multiplicam-se uma espécie de "sindicato infantil".
O Manthoc, por exemplo, é inspirado em outros
movimentos similares e diz ser um espaço em que jovens dirigentes fazem
atividades recreativas e debates.
Mas, além da parte social, um de seus objetivos
principais é defender os direitos das crianças trabalhadoras e, assim,
convencer as autoridades a implementar medidas que melhorem a qualidade
do trabalho infantil.
Atualmente, Bolívia, Chile, Colômbia, Paraguai e
Venezuela têm suas próprias organizações infantis, coordenadas sob o
guarda-chuva do Movimento Latino-Americano e Caribenho de Meninos,
Meninas e Adolescentes Trabalhadores (Molacnats).
"Esses movimentos realmente ganharam
protagonismo na região", diz à BBC Mundo Erika Alfageme, da ONG Save the
Children no Peru. Para ela, a existência de movimentos de crianças
"permite que façamos uma avaliação crítica do trabalho infantil".
Ambivalência
Muitas ONGs apoiam a luta da OIT pela
erradicação do trabalho infantil, mas a Save the Children ainda discute
entre se opor à prática ou aceitar a realidade e focar em erradicar
apenas as práticas abusivas.
"Nosso foco é proteger as crianças, e estamos debatendo qual a melhor forma de fazê-lo", explica Erika Alfageme.
Diversos governos também enfrentam a mesma dúvida.
A Bolívia, por exemplo, é membro da OIT e,
portanto, tem de cumprir com o combate ao trabalho infantil. Mas, no Dia
das Crianças do ano passado, o presidente do país, Evo Morales, se
reuniu com representantes do Sindicato de Meninos, Meninas e
Adolescentes Trabalhadores do país (Unatsbo) e defendeu os direitos dos
pequenos funcionários.
"Eles sustentam suas famílias com um trabalho
saudável, honesto. Uma coisa é o trabalho e outra é a exploração, (...) e
os que trabalham têm consciência social", afirmou o presidente na
época.
A OIT fez menção à essa ambivalência em um comunicado publicado nesta segunda-feira.
"Ainda persiste uma grande disparidade entre a
ratificação dos convênios sobre trabalho infantil e as ações que os
governos empreendem para enfrentar o problema", adverte o organismo.
Trabalho infantil equivale à exploração?
Quem advoga pelos direitos das crianças de
trabalhar pede que haja uma distinção clara entre os empregos "dignos" e
a exploração de menores.
"O trabalho em si não é negativo, nem danoso a
nossa condição de criança ou adolescente. Depende das condições em que
se trabalha", diz a página na internet do Movimento Nacional de Meninos,
Meninas e Adolescentes do Peru.
"No meu trabalho reforço (o que aprendo) em
matemática, porque tenho que calcular preços. E tratar com clientes
ajuda o meu desenvolvimento social", defende o peruano Miguel
Valenzuela.
E, segundo a Save the Children, a maioria das
crianças que participa de movimentos infantis frequenta a escola e tem
empregos que estão de acordo com suas capacidades.
Além disso, afirma Alfageme, existe uma
concepção diferente do trabalho infantil em países desenvolvidos e os de
terceiro mundo. Ela sustenta que as diferenças culturais podem levar a
uma "moral dupla".
"Nos EUA ou na Europa, é totalmente aceito que
um menino entregue jornais ou corte grama para ganhar dinheiro, ou que
um adolescente trabalhe numa rede de fast food", diz ela. "Enquanto
isso, em muitas partes da América Latina, é normal que as crianças
ajudem desde pequenas com tarefas domésticas e que colaborem com o
trabalho dos adultos, em especial nas zonas rurais."
Sendo assim, ela questiona, "quem determina o que constitui a exploração infantil?"
Não por acaso, a maioria dos movimentos de
crianças trabalhadoras da América Latina surgiu na região andina. Ali é
comum que as crianças ajudem seus pais a sustentar a casa.
"As crianças andinas são consideradas parte
ativa da sociedade e da economia familiar e desde pequenos cumprem um
papel na comunidade", agrega Alfageme.
Sucesso limitado
Por enquanto, porém, os movimentos infantis têm
tido sucesso limitado na sua causa. A OIT diz que essas organizações não
são expressivas - possuem um pequeno número de membros em relação ao
alto número de crianças que trabalham nesses países.
Ainda assim, países como Bolívia e Venezuela têm dado mais atenção a esses grupos.
Alfageme defende que, mais do que números, quer passar uma mensagem.
"Os movimentos nos mostram novas formas de pensar a infância", afirma.